quarta-feira, 1 de maio de 2013

Antes da Ordem do Dia - Saudação evocativa do 25 de Abril


 
Numa altura em que, rodeados de circunstâncias preocupantes que afligem a maioria da população deste nosso país, e porque os poetas continuam a ter o dom profético de, em poucas palavras, exprimirem os grandes sentimentos que afetam as nossas vidas, escolhemos para celebrar a passagem do 39º aniversário da Revolução dos Cravos, um poema de Manuel Alegre, escrito em 1994, intitulado “Vinte anos depois”, e que hoje continua a ser tristemente atual:

Vinte anos depois a história escreve-se ao contrário
Abril é uma data do avesso e os tanques
estão a voltar em marcha atrás a Santarém.
Se por acaso alguém dissesse É a Hora
verias que ao redor ninguém ninguém.

Um caranguejo pôs-se a caminhar
um caranguejo dentro das palavras.
Vinte anos depois há um erro de calendário
alguém anda a querer virar a página
vinte anos depois a história escreve-se ao contrário.

Resistência? Que horror. Um arcaísmo.
Não me venha com tretas neo-realistas
agora estamos na Europa e não me diga
que ainda há esquerdas e direitas. Por favor,
Agora só asséptico a jusante em termos de.

Vinte anos depois os cravos saem pela coronha
veja lá se se faz protagonista
o que é preciso agora é implementar
no programa no projecto no vector
desafio e vertente é o que está a dar.

Vinte anos depois novos censores
alguns profundamente intelectuais
têm poetas para usar em confidência
alguns mortos são mortos outra vez
vinte anos depois quem manda é vosselência.

Por mais incrível que pareça estamos todos
vinte anos depois a ser assassinados
devagar devagar a cruz em cima
enterrados aos poucos que é mais fundo
vinte anos depois de Abril não rima.

Pela vírgula mal posta pela gralha
pelo vazio a distracção a indiferença
por já não haver poema que nos valha
pela prosa que é quase uma doença
pela língua de trapos da canalha

pela pequena sacanice à portuguesa
por silêncios de gatos amestrados
pelo buraco na memória e a esperteza.
Por omissão. Por mais incrível que pareça
estamos todos a ser assassinados.

Devagar devagar que é mais depressa.