Numa
altura em que, rodeados de circunstâncias preocupantes que afligem a maioria da
população deste nosso país, e porque os poetas continuam a ter o dom profético
de, em poucas palavras, exprimirem os grandes sentimentos que afetam as nossas
vidas, escolhemos para celebrar a passagem do 39º aniversário da Revolução dos
Cravos, um poema de Manuel Alegre, escrito em 1994, intitulado “Vinte anos
depois”, e que hoje continua a ser tristemente atual:
Vinte anos
depois a história escreve-se ao contrário
Abril é uma data
do avesso e os tanques
estão a voltar
em marcha atrás a Santarém.
Se por acaso
alguém dissesse É a Hora
verias que ao
redor ninguém ninguém.
Um caranguejo
pôs-se a caminhar
um caranguejo
dentro das palavras.
Vinte anos
depois há um erro de calendário
alguém anda a
querer virar a página
vinte anos
depois a história escreve-se ao contrário.
Resistência? Que
horror. Um arcaísmo.
Não me venha com
tretas neo-realistas
agora estamos na
Europa e não me diga
que ainda há
esquerdas e direitas. Por favor,
Agora só
asséptico a jusante em termos de.
Vinte anos
depois os cravos saem pela coronha
veja lá se se
faz protagonista
o que é preciso
agora é implementar
no programa no
projecto no vector
desafio e
vertente é o que está a dar.
Vinte anos
depois novos censores
alguns
profundamente intelectuais
têm poetas para
usar em confidência
alguns mortos
são mortos outra vez
vinte anos
depois quem manda é vosselência.
Por mais
incrível que pareça estamos todos
vinte anos
depois a ser assassinados
devagar devagar
a cruz em cima
enterrados aos
poucos que é mais fundo
vinte anos
depois de Abril não rima.
Pela vírgula mal
posta pela gralha
pelo vazio a
distracção a indiferença
por já não haver
poema que nos valha
pela prosa que é
quase uma doença
pela língua de
trapos da canalha
pela pequena
sacanice à portuguesa
por silêncios de
gatos amestrados
pelo buraco na
memória e a esperteza.
Por omissão. Por
mais incrível que pareça
estamos todos a
ser assassinados.
Devagar devagar
que é mais depressa.